Nesse tempo em que a covardia contra o deputado federal Rubens Paiva volta a ser assunto, eu decidi transcrever o que declarou o jornalista Sebastião Nery sobre ele. O artigo está no livro “Ninguém me Contou. Eu vi – De Getúlio a Dilma”. Transcrevo para ter a honra de tê-lo nesse meu espaço. Mas, antes de transcrevê-lo, afirmo que a leitura do livro de Marcelo Rubens Paiva, em especial, dos capítulos onde ele conta a prisão do pai, é difícil. Dói. Quando conheço histórias assim, reafirmo a minha convicção de existência do inferno, pois só a morte de torturadores e de seus chefes não é pena suficiente para as dores que eles causam. O céu nem precisa existir. Para mim, basta que o inferno mantenha os cruéis por toda a eternidade.
Bem, vamos ao texto do jornalista Sebastião Nery. Ele faleceu em setembro do ano passado, com 92 anos de idade. Eu o conheci mais de perto, quando ele foi candidato a Vice-Prefeito do Rio de Janeiro na chapa encabeçada pelo Rubem Medina, em 1985.
“Era 20 de janeiro de 1971, feriado, dia de São Sebastião, padroeiro do Rio e meu. Antes das 10 da manhã, a caminho da praia, parei o carro em frente à casa do ex-deputado do PTB paulista, cassado, Rubens Paiva, na Avenida Delfim Moreira, Leblon, Rio. Minha filha, colega da filha dele, desceu para pegar a amiga. Mandei um recado:
- Diga ao Rubens que não entramos porque estamos todos com roupa de praia. Quando voltarmos, passaremos aqui para dar-lhe um abraço. Ela subiu, demorou um pouco, desceu com a Malu e me perguntou:
- Você brigou com o tio Rubens? Ele estava no quarto, calçando o sapato, com três homens de paletó e gravata. Dei o recado e ele disse: “Foi melhor assim”.
Fiquei calado, para não assustar as meninas. Mas vi quatro suspeitas Kombis brancas em torno da casa, com várias pessoas dentro, olhando estranhamente para nós. Quando chegamos à praia, disse à minha mulher:
- Estão prendendo o Rubens. Aquelas Kombis estão sem placas.
- Devem ser amigos ou gerentes da fazenda dele em São Paulo.
Não fiquei tranquilo. Apressamos o banho de mar e na volta já ninguém chegava mais perto da casa cercada, com a avenida fechada. Parei mais adiante e o porteiro de um prédio próximo me contou:
- É a aeronáutica prendendo um cara daquela casa.
Voltei rápido e aflito. Era preciso espalhar urgente a notícia. Mal entramos em casa, ali perto, na Marquês de São Vicente, toca o telefone:
- Minha filha está com vocês?
- Está sim. O que aconteceu?
- Cuidem dela. E desligou. Era Eunice, mulher do Rubens que seria presa a seguir.
Peguei o carro, fui correndo à casa do José Aparecido, na Aires Saldanha, em Copacabana. Na véspera, havíamos jantado lá com o Rubens. Entre outros, lá estava o Bocaiúva Cunha, também cassado e sócio do Rubens numa empresa de engenharia. Na saída do jantar, o Rubens pegou um cartão (Rubens Paiva, engenheiro civil), escreveu dois números de telefone ( 223-1512 e 227-5362), me entregou (guardo até hoje):
- Você anda sumido, acompanho-o pela Tribuna e pelo Politika . Vamos conversar.
- Passe lá amanhã para um uísque. É dia de seu padroeiro.
Eu o conhecia desde 1953. Ele, presidente do Centro Acadêmico Horácio Leme, da Escola de Engenharia da Universidade Mackenzie, em São Paulo, depois vice-presidente da União Estadual dos Estudantes, e eu dirigente do Diretório Acadêmico da Faculdade de Filosofia de Minas.
Em 1962, nos elegemos, ele deputado federal por São Paulo, eu estadual pela Bahia. E nos encontrávamos nas lutas do governo Jango. Ele foi diretor do Jornal de Debates e cassado na primeira lista do golpe militar de 1964, por ter feito parte da CPI do IBAD, que denunciou inclusive o farsante Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Em 1965, Rubens assumiu a direção do Última Hora de São Paulo, onde eu vivi um ano clandestino e trabalhei escrevendo anonimamente.
Foi uma noite desesperadora. Com Aparecido, tomando todos os cuidados, fomos à casa de Bocaiúva, na Delfim Moreira e também na de Waldir Pires, na Ruy Barbosa. Ninguém devia falar ao telefone naqueles sinistros anos do governo Médici. Mas, era preciso avisar aos amigos, sobretudo de São Paulo e Brasília, fazer um cerco antes do pior.
Não adiantou. No dia 21, soubemos que fora levado para o notório brigadeiro Burnier, da aeronáutica, e de lá entregue ao DOI-CODI do exército, na Barão de Mesquita.
Já no dia 23 a certeza de que tinha sido assassinado. O jornal O DIA, do Chagas Freitas, em manchete fraudada, com a foto de um carro queimado, dizia que “o carro que o transportava do comando da 3a Zona Aérea da Aeronáutica para o DOI-CODI do exército tinha sido interceptado por desconhecidos, que o teriam sequestrado”.
Eunice Paiva, presa com uma filha e incomunicável durante quinze dias, quando saiu lutou como uma leoa. Com o líder do MDB na Câmara Oscar Pedroso Horta, denunciou ao Conselho de Defesa da Pessoa Humana, que o arquivou por ordem de seu presidente, o tal Alfredo Buzaid, que disse que Paiva estava foragido. O bravo Pedro Horta, líder do MDB, escalou os deputados Marcos Freire e Francisco Pinto para denunciarem o fato na Câmara.
A “grande imprensa” não disse nada. Só a Tribuna da Imprensa e o nosso Politika desafiaram a censura e furaram o tumor. Desde então, todo ano, no dia 20 de janeiro, relembro o crime. Em 2012, a Globo News, em um belo trabalho da Miriam Leitão, pôs no assunto pela primeira vez na TV.
Mas o mais completo documento sobre o assassinato de Rubens Paiva pela aeronáutica e pelo exército é o livro do jornalista Jason Tércio – Segredo de Estado – o desaparecimento de Rubens Paiva (Ed. Objetiva). Está tudo lá.
Os histéricos apavorados que assinaram manifestos contra a “Comissão da Verdade” sabem que um dia a Hora da Verdade chegará”.