
Emenda daqui, emenda dali e agora entramos numa de emendar as emendas para fazer a Constituição retornar à origem. Eis o que é a Proposta de Emenda Constitucional chamada pelos aliados do governo de PEC da Blindagem e de PEC das Prerrogativas pelos demais.
A falta de qualidade dos legisladores faz com que o processo legislativo brasileiro seja insano. Em 1986, elegemos deputados federais e senadores com a obrigação de em nosso nome criarem uma Constituição. Eles nos ouviram e nos deram uma Carta com 250 artigos. Apesar disso e, talvez também por isso, a obra não é perfeita. Por conseguinte nela estão autorizadas uma revisão e emendas de adaptação, observada a premissa inviolável e pétrea: “Todo o poder emana do povo…”. Então, só deveriam valer as emendas de interesse do povo. Certo?
Hoje já há na Constituição 134 remendos e se sabe que existe uma fila enorme de espera sem que seus autores ouçam o povo. A PEC das Prerrogativas (PEC da Blindagem) faz parte do conjunto.
O artigo 53 original assegurou aos parlamentares imunidade material (por opiniões, palavras e votos) e prerrogativas processuais mais amplas para que “todo o poder emane do povo que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos.” Portanto, as prerrogativas não são um salvo-conduto dos representantes, mas uma garantia para os representados.
Contudo, sob pressão e medo da opinião da imprensa, os parlamentares mudaram o artigo 53. Eles instituíram, em 2001, a Emenda 35 para permitir que eles mesmos pudessem ser processados sem prévia autorização dos demais representantes do povo.
Agora, vendo a besteira que fizeram, querem revogar a Emenda 35 para voltarem ao texto original e como desgraça demais é coisa pouca para os legisladores, eles pretendem ir além para incluir nas prerrogativas os presidentes dos partidos, gente que não nos representa e é responsável pela péssima qualidade da representação política.
Esse vai e volta não é apenas um exercício de técnica legislativa — é a demonstração de que há falta de estabilidade institucional. Com a rotina de emendar a Constituição, o Congresso reafirma que para ele a Carta não é um marco sólido e garantia para os representados, mas um instrumento de disputas conjunturais entre os representantes.
Pior ainda é a confusão apaixonada, que tira de foco a razão das prerrogativas. Elas não são para proteger assassinos, ladrões e menos ainda os bajuladores dos agentes do Estado. O artigo 53 original entendeu que o Congresso saberia expurgar os bandidos. E sabe. Já mostrou que sabe. Basta que os bandidos estejam em menor número; sejam a minoria. Se não forem, a responsabilidade é do povo.
As prerrogativas existem para dar aos representantes do povo os instrumentos de defesa dos representados todas as vezes que o Estado invista contra eles.
Quando os representantes do povo perdem as prerrogativas para defender os representados das ações ilegais dos agentes do Estado (juízes, procuradores, policiais e até mesmo legisladores), os representados são entregues aos verdugos de plantão. Não há motivo, então, para ter medo ou vergonha de defendê-las.
Em abril de 1976, com 23 anos de idade, tomei um tranco. O deputado federal a quem dei o meu voto foi cassado. Lysâneas Maciel, um homem honrado, perdeu o mandato por dizer o que nós, seus representados gostaríamos de dizer. E tive muita raiva quando li o discurso do Presidente do Senado sobre o fato. Disse ele: “O ato de ontem é um ato excepcional contra uma excepcionalidade no mundo político, porque o deputado cassado era um corpo estranho, deslocado da disciplina partidária e um desafeto; era algo que precisava ser expelido, para assegurar não só a paz interna no seu partido, como o constante aperfeiçoamento das práticas democráticas. O ex-deputado foi alguém que fazia provocação diariamente, no Congresso e fora dele. Onde quer que se encontrasse, investia, lançava toda a sorte de agravos inclusive contra o Presidente do seu Partido (Sessão do Senado, 02.04.1976).
O deputado Lysâneas me representava e eu até hoje duvido muito que o Senador Petrônio Portella, presidente do Senado naquele momento, eleito pelo Piauí, tenha representado o povo que o elegeu ao dizer o que disse.
A ausência das prerrogativas que hoje quase ninguém entende e por isso critica foi motivo de muitos terem ficado pelo caminho na luta pela democracia.